sábado, outubro 07, 2006

Síndrome de Policarpo Quaresma

Em agosto de 2000, o deputado Aldo Rebelo propusera um projeto de limitação dos estrangeirismos, alegando que o inglês nos era imposto de maneira a limitar nosso enriquecimento cultural com a criação de novos termos em português. E ele mesmo ficou envergonhado ao citar a palavra “outdoor” numa entrevista, logo corrigindo para “cartaz grande”. E não foi o primeiro nem o último nacionalista lingüístico a fazer tais críticas, sendo que em 1920 já existiam, na época voltadas ao uso do francês e ao português (mal) falado pelos imigrantes, principalmente italianos. E do mesmo jeito que Aldo Rebelo, nossa intelectualidade sempre quis impor (e ainda quer impor) a invenção de termos em português para essas palavras novas que vinham do exterior.


Afinal, por que a intelectualidade brasileira faz tais críticas? Os estrangeirismos são usados sem problemas pela maioria da população, e estão bem difundidos mesmo no português coloquial. Hoje, a grande maioria desses termos tornaram-se indispensáveis para o prosseguimento da nossa rotina diária, e querem baixar um decreto nos impedindo de usar palavras estrangeiras? Isso sim é que é uma imposição, em contraste com a assimilação espontânea de estrangeirismos.


Voltando aos anos 20, lá tínhamos o uso de palavras do francês. Vocês percebem que hoje não temos mais? O que aconteceu? Um fenômeno lingüístico que faz parte do intercâmbio cultural sofrido pelo Brasil, o chamado aportuguesamento. Hoje, palavras como abajur, sucesso e constatar eram condenadas pela elite intelectual, mas graças ao aportuguesamento lento e gradual, sem nenhuma interferência, essas palavras vieram a ser integradas ao português. O que os lingüistas queriam na época era aportuguesar tudo por decreto, mas leva-se um bom tempo para que uma palavra estrangeira seja aportuguesada e torne-se popular na população. Somente com o consentimento e uso comum pela população uma palavra pode ser oficializada, e não é um decreto ou uma intelectualidade nacionalista que irá determinar se uma palavra deve ou não ser usada.


Fazendo uma análise mais global, percebemos que nenhum idioma no planeta deixou de sofrer influências de outros idiomas. O inglês que hoje é dito como imposto, surgiu de profundas influências francesas, nórdicas e latinas na língua germânica que era o anglo-saxão. O árabe influenciou muitas línguas sul-européias, o russo sofreu influência latina, e por aí vai. Os idiomas não são estáticos, mas dinâmicos, estão sob constante mudança, e esse processo nunca parou de acontecer.Acontece hoje mesmo, ainda que haja oposição por parte de projetos como o de Aldo Rebelo.


Ao banir os estrangeirismos estamos rejeitando a principal característica que distingue o português brasileiro do português falado em Portugal: sua adaptabilidade. O português do Brasil é notável por sua informalidade e sua flexibilidade, o que faz com que seja uma língua única, que se constrói a partir de sincretismos lingüísticos. Afinal, nosso idioma é tão miscigenado quanto nossa própria cultura, e tirar a flexibilidade do nosso português faz com que se descaracterize uma porção formadora da cultura brasileira, indo contra a lógica miscigenadora que sempre regeu nossa evolução cultural e lingüística.


Vocês se lembram do movimento antropofágico motivado pelo modernismo? Este movimento incentivou a integração de variadas influências literárias às obras brasileiras. Era justamente uma reação à essa recolonização lingüística que a elite parnasiana pretendia. Retornar o português do Brasil aos padrões formais lingüísticos e culturais de Portugal era inaceitável, pois como já foi dito, o português falado do Brasil é tipicamente informal. O Brasil nasceu como uma cultura miscigenada, e essa miscigenação nunca vai acabar. Valores de fora sempre serão agregados e adaptados ao Brasil, de modo que leva-se tempo para que o processo de adaptação se complete.


Toda essa rejeição aos valores culturais de fora nos remete ao personagem Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Policarpo era um visionário radical, que defendia que o Brasil podia ser totalmente auto-suficiente, na questão cultural, econômica, política e lingüística. Junto com outras propostas estapafúrdias, ele propôs o ensino e a imposição do tupi-guarani como idioma oficial do Brasil. Além disso, foi frustrado em todas as suas outras teses, e no final acabou sendo fuzilado pelo governo de Floriano Peixoto, este que foi seu amigo até o momento em que Policarpo fez oposição a seu governo. Parece que a intelectualidade brasileira nacionalista sofre de um caso grave de Síndrome de Policarpo Quaresma. O que eles precisam é de uma injeção de realidade para perceber que nenhum país no mundo conseguiu ser culturalmente auto-suficiente, nem tentando muito. Eles precisam entender que é um processo normal e contínuo, e que todas essas influências serão digeridas com o tempo.


Quando José de Alencar escreveu “Senhora”, acentuou a palavra na primeira edição (“Senhóra”), valorizando a pronúncia da palavra no português do Brasil, em contraste com a pronúncia de Portugal (“Senhôra”).Desde então, nosso idioma tem se diferenciado de Portugal com a integração de palavras novas que com o tempo foram aportuguesadas, ao contrário do que fez Portugal, que criou palavras em português mesmo para as novas palavras. Em Portugal, para ler este texto você estaria manipulando o rato, não o mouse. Qual palavra você se sente mais confortável para falar? A maioria da população ainda se sente confortável falando mouse. Se nosso idioma deve ser mudado, que seja por evolução gradual e natural, seguida de um estudo lingüístico, ao invés de um decreto, este sim imposto, em contraste com os estrangeirismos.



1 Comments:

At outubro 09, 2006, Blogger gio14vr said...

Oi...
Decretar uma lei que proíba estrangeirismos na língua portuguesa é realmente absurdo.Com a revolução tecnológica ocorrida nessas últimas décadas é quase ímpossível que hoje em dia não se faça + uso de palavras vindas de fora....

 

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