domingo, dezembro 24, 2006

Os Limites da Democracia

“Se os pobres votassem para que os bens dos ricos fossem distribuídos entre eles, não seria isso uma injustiça?” Aristóteles

O que é democracia? Um sistema onde as decisões tomadas pelo governo têm que passar pela aprovação da maioria da sociedade. Isso é, pelo menos em princípio. Na democracia clássica, aquela praticada em Atenas na Grécia antiga, todos os cidadãos têm direito a voto direto nas decisões tomadas pelo Estado; a democracia moderna se aproxima mais de uma república, onde a sociedade expressa seus interesses através de representantes eleitos.

O sistema democrático, especialmente o representativo, tem falhas inerentes a ele próprio, tanto quanto o ser humano tem falhas – trata-se de algo natural. Muitas ditaduras usaram o argumento de que uma democracia “não tem o poder de agir decisivamente” para ganhar o apoio do povo em momentos de necessidade. Na verdade, a democracia, ao dar a todos ao menos uma possibilidade de ação, tende a contrabalançar essas falhas naturais, onde uma ditadura tende a realçá-las, pois não há ninguém para se opor.

Assumimos hoje que a democracia é a melhor forma de governo que já foi testada. Até este ponto, as únicas pessoas que se irritaram ao ler este artigo foram aquelas que defendem um governo forte para “dar rumo” à sociedade. Mas não se aflijam – o objetivo aqui não é defender a democracia, mas discutir a frágil relação entre o poder popular e a liberdade individual.

É amplamente considerado, hoje em dia, que o fato de eleger um representante para atender aos interesses de um grupo é algo legítimo. Por exemplo: um grupo de cidadãos de uma cidade concordam em apoiar a candidatura de determinado vereador, sabendo que, se eleito, esse vereador vai fazer com que a máquina do Estado penda para o lado daquele grupo, através de leis. Esse é, sem dúvida, o princípio fundamental da democracia. Mas será que é só isso?

Como já foi lembrado muitas vezes anteriormente, o Estado não é uma entidade auto-suficiente – ela funciona com recursos tirados na marra daqueles que trabalham gerando riquezas. Esses trabalhadores, empresários etc. pagam tanto quanto qualquer outro, mas pode ser que não tenham número ou organização suficiente para eleger um representante seu. Como fica então? Será que, por ter maior poder político, aquele grupo que se organizou pode usar os recursos tirados de todos para fins que lhes dêem vantagem? Será que é justo que eles usem o Estado para interferir nas liberdades do segundo grupo?

É aí que se encontra o dilema da democracia em uma sociedade livre – respeitar os direitos de todos, e ao mesmo tempo garantir que os governantes passem por uma substituição periódica, mantendo-os subordinados à vontade da população. Como evitar que grupos de interesse monopolizem o governo, prejudicando outros em favor próprio? A única solução para esse problema, que não passe pela anarquia, é a solidez das instituições: em qualquer constituição deve estar bem especificado o papel do Estado e dos representantes eleitos. O respeito a essas regras deve ser dever de todos, e as violações punidas exemplarmente.

A Constituição brasileira, elogiada pela imensa maioria dos acadêmicos e políticos brasileiros, é um autêntico livro de terror para um liberal, pois atribui ao Estado um número enorme de responsabilidades “politicamente corretas” bastante genéricas, e que dão amplo espaço para distribuição desigual de impostos da maneira que mais agradar aos representantes.

Portanto, como se não bastassem os problemas inerentes à democracia representativa, entre os quais se destacam a corrupção e o uso de poder em benefício próprio, a própria estrutura do sistema de governo democrático-representativo brasileiro dá margem para que os representantes usem o dinheiro público como eles – ou suas bases de apoio – bem entenderem.
A maior necessidade do Brasil neste momento é uma profunda reforma estrutural, que dê mais espaço para o indivíduo exercer seus direitos e menos poder ao Estado e seus agentes para decidir os rumos da vida nacional. Novamente, devemos lembrar que os nossos governantes são empregados e não patrões – eles foram eleitos por um certo grupo de cidadãos, mas são subordinados à toda a sociedade, e portanto devem servir a ela como um todo. Afinal, como dizia um tal de James Bovard: “Democracia deve ser alguma coisa mais do que dois lobos e um cordeiro votando o que comer no jantar.”

quarta-feira, dezembro 13, 2006

Os Erros do Gigante













Reconstrução em computação gráfica de um galeão chinês presente na expedição de Zheng He do século XV. Esse modelo podia levar cerca de mil tripulantes.


A China hoje é um dos países que mais crescem economicamente, não somente em números como também têm-se verificado grande melhora na qualidade de vida da população e na escolaridade das pessoas. Quarenta anos atrás, a China vivia num regime de economia fechada e planificada, totalmente controlada pelo Estado e arruinada por crescente militarização. Hoje, a liberdade econômica é um dos principais princípios de sustentação da economia chinesa, e o governo chega a admitir a existência de propriedade privada na Constituição. Como se deram tais mudanças? Para entendermos melhor a mentalidade do povo chinês temos que nos aprofundar mais em sua história e sua cultura.

Na história do mundo, a China é uma das nações unificadas mais antigas da Terra, com uma cultura cuja longevidade se estendeu a outras nações e sempre foi guia para as decisões que essa civilização tomou. Os chineses foram unificados pela primeira vez sob a dinastia Qin, que oficializou a escrita chinesa e de um modo geral a cultura, mas mesmo antes disso as dinastias anteriores acreditavam na vontade dos deuses como legitimadores do mandato do Imperador, na cultura deles o filho dos céus. Se algo dava errado com a dinastia, se o povo passasse necessidades, se o Imperador explorasse a população com trabalho extra e taxas absurdas, revoltas aconteciam, e essas dificuldades eram tidas como sinais de que os céus desaprovam este Imperador. Deste modo, caíram muitas dinastias, os Qin dentre elas, graças ao seu autoritarismo.

Períodos prósperos se sucederam, sob a dinastia Han que se caracterizou por fatores como a dinamização da economia (com a abertura da Rota da Seda, que ia até Roma), a abertura cultural e como a criação de um funcionalismo público eficiente, com testes para admissão que incentivavam a competitividade nesse povo. Essas reformas e as influências culturais estabeleceram as bases definitivas da cultura e da sociedade chinesas, que prevalecem até hoje (tanto é que a etnia “chinês” é chamada de “Han”). Nas dinastias Tang e Sung a China era uma das maiores potências do mundo, com a maior população da Terra e com cada vez mais inovações tecnológicas. Depois dos Sung, porém, houve uma grande invasão mongol e o estabelecimento da dinastia Yuan, que durou algum tempo, e depois a dinastia Ming.

E é aqui o ponto em que a China muda de mentalidade drasticamente. Nesta dinastia a tendência de reviver os valores Han foi presenciada, porém uma parte da elite se tornou conservadora e fechada, enquanto outra continuava com ideais de abertura econômica e cultural da China para o mundo. As expedições de Zheng He pelo Oceano Índico datam deste período, viagens nas quais foram estabelecidos laços políticos e econômicos com regiões da África Oriental, Índia e Oriente Médio. Supostamente esta expedição teria chegado ao Cabo da Boa Esperança e às Américas, como alega uma popular (porém controversa) teoria atual. O caso é que eventualmente eles acabariam fazendo isso, pois a China tinha todas as condições para tal, apesar de ter intenções diferentes. Os navios chineses eram gigantescos, capazes de carregar centenas de soldados, com suas armas e cavalos. A China era um gigante auto-suficiente, sem necessidade de expandir, mas com o desejo de fazê-lo por interesses políticos, de estabelecer vínculos tributários e marcar a dominância do Império Chinês na região. E porque tais viagens não continuaram?

O importante aqui não são as viagens, mas o processo que envolveu seu fim decretado. Na China uma intriga entre elites surgiu, e as elites conservadoras confucionistas venceram as elites religiosas liberais. Na metade do séc. XV toda a grande marinha chinesa foi decomissionada, e toda a construção de navios para navegação marítima foi cancelada, declinando também a indústria de ferro. No final do século, os súditos do Império foram proibidos de construir navios ou deixar o país. O comércio se revitalizou quando a prata substituiu o papel-moeda. Historiadores alegam que essa renovação se transformou em estagnação, e que a ciência e a filosofia foram travadas em uma rede apertada de tradições que frustravam toda a tentativa em algo novo. Aqui começa o calvário chinês.

Por séculos que se seguiram, a China fechou-se ao mundo, agora sob a dinastia manchu, os Qing. Eles foram estritamente tradicionais e não mais se expandiram comercialmente pelo mar, somente à força militar em terra, notadamente na Ásia Central. E tudo isso enquanto chegavam os europeus pelo mar e atrelavam os mercados asiáticos e africanos às suas metrópoles. A China poderia ter competido com os europeus, firmando-se como potência marítima e regional, mas não o fez e ficou atrasada. Um episódio interessante de se mencionar para ressaltar o fechamento chinês trata de uma visita diplomática inglesa à Beijing, que trouxe dentre os presentes o que havia de mais avançado tecnologicamente na Inglaterra da época (que já entrava na Revolução Industrial). Os chineses despacharam um embaixador à Londres, que afirmou que os chineses não foram impressionados pelos presentes ingleses, e que a Inglaterra estava livre para pagar homenagem e tributo ao Imperador. Londres nunca mais tentou uma aproximação diplomática com os Qing.

O que se segue, é claro para todos. O eventual esgotamento dos mercados mundo afora que leva os europeus (obviamente não isentos de qualquer parte da culpa) a infiltrar seus produtos na China. E como a China era praticamente auto-suficiente e ao mesmo tempo soberana, os produtos europeus não podiam entrar no país (mesmo que fossem de melhor qualidade e proporcionassem uma competição construtiva). Os ingleses venderam ópio, e até guerrearam por este mercado. Nesta guerra os chineses foram derrotados, seu ego foi duramente golpeado e a população tomou consciência da incompetência do governo Qing em modernizar o país. Revoltas aparecem em toda a China, enquanto os europeus começam a abrir caminhos à força de armas para atingir o mercado chinês. Tantas insurgências e tumultos levarão, no século XX, à derrubada da monarquia, seguindo-se a isso o estabelecimento do partido nacionalista chinês como único legalizado pela República da China e posteriormente o estabelecimento da República Popular da China, na China continental, liderada por comunistas.

Claro, os europeus estavam errados como qualquer entidade política que declara guerra e destrói vidas. Mas mais errados estavam os governantes Qing, que não se preocupavam com a soberania chinesa e com o aumento do poderio ocidental. Já no início da Era dos Descobrimentos a China podia ter se tornado um poder marítimo regional e poderia negociar em pé de igualdade com as civilizações ocidentais, adaptando o que ela quisesse sem precisar ter de ceder muito às nações européias. E o que os Qing deviam ter feito era não se contentar com o medíocre, mas ir buscar além. Eles se colocaram numa posição confortável, acreditando que a China era soberana por direito divino, se apegando às tradições e falharam em perceber que o mundo à sua volta mudava, e se perceberam, falharam em fazer a China acompanhar as mudanças. A China podia estar como potência na região, e, no entanto, foi explorada.

A função do poder militar e político não é tornar o país forte o suficiente para derrotar os outros ou algo do tipo, ao contrário do pensamento de muitos. A função desses poderes é assegurar a soberania do país, defender os interesses de sua população e a integridade da mesma. Custe o que custar. A posição cômoda dos Qing, arrogante quando precisava ser humilde, passiva quando precisava agir, indiferente quando o poder público precisava-se fazer presente causou a derrocada da China.

E atualmente? Nos anos seguintes à morte de Mao Zedong, reformas liberais foram feitas para reestruturar a economia chinesa e atrair investimentos. Os chineses conseguiram, depois disso, transformar o poder econômico em político de modo que sua soberania fosse garantida e que ela pudesse novamente negociar em pé de igualdade com os outros países. Com a China podemos aprender que um país deve se impor, e nunca se alienar do mundo, pois este nunca pára de evoluir e quando um país não evolui com o mundo, está sujeito a perder participação nas decisões de âmbito mundial que afetam o povo desse país.